sábado, 29 de maio de 2021

Star Trek: Deep Space Nine. Temporada 1


O que é Deep Space Nine e o que é Star Trek?

Deep Space Nine (1993-2000) é ousado. Star Trek (pra mim será sempre Jornada nas Estrelas) é um fenômeno da cultura pop interessante, isso porque a produção insiste em se pôr contra os moldes do status quo vigente e apresenta temas espinhoso, difíceis de digerir, temas polêmicos e inquietantes, tudo dentro de uma atmosfera de série tipicamente americana, tem abertura, encerramento, atores carismáticos e um enredo que envolve aventura e ação. Foi em Star Trek (1967-1969), a série clássica que a televisão registou o primeiro beijo inter-racial numa época em que beijar na TV por si só já era ousado. A criação de Gene Roddemberry nos mostrou uma sociedade sem classes sociais e propriedade privada e a única ordem parecida com o Estado é uma federação de planetas unida, se por acaso você concluiu que isso parece socialismo, bem, você não concluiu errado, a não ser talvez que comunismo seria melhor aplicado ao que a série descreve.

Em Star Trek o homem superou as contradições de nossos tempos, o motor de dobra (warp) deu ao homem a emancipação de fato. Emancipou-se da propriedade, do capital, das classes, do Estado, da fome, das doenças (como conhecemos hoje) e da pobreza. E se um mundo assim lhe parece chato, recomendo que assista a série para tirar as dúvidas. Star Trek: Next Generation (1987-1993) anaboliza todos os conceitos da série original, se na série da década de 60 ficou subentendido que o capital e o dinheiro haviam sido superados em Next Generation isso é dito com todas as letras logo no primeiro episódio e sustentado por longeva sete temporadas. O motor de dobra deu ao homem não só o primeiro contato, mas permitiu que tempo e espaço não fossem mais limitações, os replicadores, ou sintetizadores de acordo com a tradução da época, deu ao homem a emancipação do trabalho na perspectiva de exploração, em Star Trek as pessoas os personagens parecem felizes porque de fato estão, não haverá episódios onde depois de alguma ordem um subalterno de Kirk ou Picard dirá “eu não ganho pra isso”. Os replicadores nesse sentido não colocaram fim apenas a fome, mas ao trabalho exploratório, o homem em Star Trek não trabalha para viver, ele trabalha por viver, o trabalho é uma forma de melhorar a si mesmo, de construir um mundo melhor, de se aperfeiçoar naquilo que ama. Não por menos os personagens como Kirk, Picard, Mccoy ou Spock são tão apaixonados pelo que fazem, e consequente são cativantes, eles não fazem o que fazem por salários ou algo do tipo, eles o fazem porque amam fazer, seus trabalhos são suas vidas, os define. Podemos fazer comparação a uma outra obra da cultura pop que gosto, Alien.

Star Trek vs Alien 

Alien é uma série futurista de filmes de terror e ficção científica sobre uma criatura implacável e predadora, o xenomorfo, predador dos predadores se me permitem a piada, a série já deu origem a livros, quadrinhos, games e incontáveis adereços como camisetas, bonecos de ação além de estar no home video e hoje no streaming. Em Alien o primeiro filme de 1979 acompanhamos a trajetória da subtenente Ellen Louise Ripley, em um rebocador espacial, a nave gigantesca Nostromo, que retorna para a terra com uma refinaria de minérios de vinte milhões de toneladas. Descobre junto a seus companheiros que uma criatura infectou um deles e depois de se “libertar”, e coloca libertar nisso, a monstruosa aberração agora os persegue. A criatura é apenas instinto e ignora qualquer conceito de moral humana, matar é tudo o que ela conhece, nem olhos para registar as dilacerações a criatura possui. Em Alien o homem também expande seus domínios para o espaço, porém não houve emancipação, o futuro de Alien é vazio, gelado, solitário e amedrontador. Assim que acordam de um período de hibernação os personagens falam sobre salários, quanto ganha cada um para fazer a função, e nave nos apresenta hierarquia mas também nos mostra que naquele futuro a exploração de classes, dinheiro e trabalho não mudou em relação a nós, Nostromo não é uma nave de exploração espacial como Enterprise, não é uma missão científica, Nostromo é uma nave de exploração do trabalho para uma mega corporação, Nostromo não busca conhecimento busca lucro, o androide em Alien segue as ordens da empresa que o construiu e quando mata é apenas redução de custos, quanta diferença para o Data, não?  Um enredo que coloca pessoas no espaço como trabalhadores assalariados em um futuro onde o homem consegue viajar pela galáxia mas não consegue emancipar da exploração de classes e dos interesses mesquinhos de grandes conglomerados empresariais só poderia mesmo ser um filme de terror.

Como encarar Star Trek

 Star Trek possui duas abordagens, uma é a abordagem crítica, interna, as camadas proeminentes do roteiro inteligente sempre olhando para os nossos problemas, um olhar para espelho, Stanislaw Lem em Solaris escreve que olhamos para o céu não buscando novos mundos e sim buscando espelhos, procuramos à nós mesmos. Isso não poderia se encaixar melhor em Star Trek. A segunda é a abordagem como produto da cultura pop, uma análise externa, uma série modelada de acordo com sua época.  Deep Space Nine tem as duas abordagens em seu cerne. É um olhar impiedoso ao mundo de sua época, suas contradições, é um trinfo de texto, tal a precisão das metáforas aos problemas da época, ao mesmo tempo que se trata de um produto de televisão, feito para lucrar e manter espaço para as propagandas comerciais.

Enfim, Deep Space Nine 

A série foi idealizada por Rick Berman e Michael Piller seguindo os passos do que já havia feito Gene Roddemberry. A produção começou a ser escrita em 1991 mas só foi ao ar em 1993. A trama nos mostra o capitão Benjamim Sisko que teve sua vida dramaticamente mudada nos acontecimentos da quarta temporada e Next Generation quando Picard sob controle dos borgs destrói quase toda as defesas da frota estelar, assim a nave do capitão Sisko é destruída e sua esposa morta. Sisko então precisa não apenas lidar com o trauma da morte violenta de sua mulher como precisa criar seu filho, Jake, agora sem a mãe. O Comandante é designado a um posto de um longínquo quadrante dentro do espaço da federação. Deep Space Nine é a estação espacial em questão. Em primeira estancia a estação não tinha grandes interesses, fora uma obra dos cardassianos que a usaram para reprimir e observar os povos bajorianos. Os cardassianos possuíam um domínio brutal sobre os povos de Bajor, campos de concentração e perseguição sistemática eram praticas cotidianas. Quando os rebeldes bajorianos libertam seu povo o domínio de Cardácia chega ao fim e a frota estelar manda Sisko para administrar a transição do governo provisório. O plot realmente começa quando uma fenda espacial (buraco de minhoca) é descoberto no quadrante de Deep Space Nine fazendo da estação que até então era insignificante a estação mais valiosa da galáxia, pois a fenda dá direção ao quadrante gama, uma região não explorada do universo, Sisko se torna o comandante do setor mais importante da federação, e precisará lidar com o governo provisório, os cardassianos que também querem explorar a fenda espacial além dos povos de toda galáxia que querem explorar a fenda, caçadores, cientistas, pesquisadores e curiosos. Só isso já garante um ótimo ponto de partida, mas temos também personagens fascinantes em todos os pontos da trama, Odo o chefe de segurança casca grossa, um transmorfo aparentemente o único de sua espécie, o médico gente boa Julian Bashir, o chefe O’brian que terá mais aprofundamento e sua personalidade desenvolvida aqui, Kira Neris, uma major das forças rebeldes bajorianas, com o fim da dominação cardassiana ela se torna  oficial do governo de transição, através de seus olhos veremos a dor do povo bajoriano, como a dominação aleijou suas almas e as revoltas, feridas abertas que nunca cicatrizam, marcaram suas vidas, terror sempre é terror. A oficial da frota estelar Jadzia Drax, uma personagem singular por ser fruto da união de um simbionte e um humanoide, diferente do que a literatura nos mostra, ela é um trill e na sua cultura a junção entre os dois seres é uma hora e não uma desventura, um privilégio, dessa junção nasce um indivíduo novo que conserva as memórias dos dois, mas com uma nova consciência. Quark é um ferengi e meu personagem favorito, ele administra um estabelecimento onde pode-se jogar, divertir-se, passar a noite, comer, ele é um homem de “negócios”. Seu povo foi pensado por Gene Roddenbery para servir de chacota ao capitalismo. Assim como todos de seu povo Quark é mesquinho, ganancioso, egoísta, só pensa em lucro (isso é pra eles uma religião!), mas ao longo da temporada vemos que ele tem consciência, bem lá no fundo é verdade, mas ele tem, é nele que o humor da série é melhor explorado. Como se não bastasse estes ótimos personagens temos também personagens secundários muito bem escolhidos.

Diferente de tudo que havia sido feito até então Deep Space Nine não se passa em uma nave estelar, não se trata de explorar o espaço. O cenário da série é fixo a maior parte do tempo, não são nossos heróis que viajam para conhecer novos povos, são os povos que vem a base estelar, seja para conhecer a fenda ou para abastecer suas naves. Deep Spece Nine funciona como um grande porto em um ponto do oceano, isso é genial, pois a proposta de Star Trek de conhecer novos povos, novos mundos pode ser mantida mesmo que sem nave espacial.

Deep Space Nine e seu tempo

As referências aos problemas do mundo de sua época são o achado de Deep Space Nine. A frágil relação do governo provisório com o conflito e ressentimento do povo de Bajor sobre Cardassianos pode ser lida como uma menção aos povos armênios, judeus, os povos africanos em relação aos europeus. A fenda tornando o quadrante o lugar mais importante da galáxia pode ser associado a faixa de Gaza por exemplo. Mas sem dúvidas o que mais influenciou na trama foram as guerras do Golfo e as guerras civis na antiga Iugoslávia. Na guerra do Golfo temos os EUA adentrando em um conflito polémico contra o Iraque para mapear a exploração da região com o apoio da ONU terminado com a libertação do Kuait, uma relação de tenção militar constante entre os povos envolvidos. Tal como na série uma região de interesse está entre dois povos em guerra. Já em relação da Iugoslávia os crimes de guerra são marcas profundos que sentimos na série. A série não nos poupa de temas como genocídio, tortura, campos de concentração, e a marca que tais violências trazem são introduzidas no texto da produção. Era comum abrimos os jornais na época (abrir jornais, vocês que estão lendo esse texto entendem essa referência? Hoje se liga o computador), o que víamos eram os conflitos no Golfo, a tenção entre israelenses e palestinos, o desmantelamento da Iugoslávia e mais tarde a guerra entre os tutsis e os hutus no genocídio em Ruanda. Estes conflitos podem ser lidos no decorrer dos episódios da série, todos desenvolvidos como críticas sociais profundas e brilhantes, quem dera estes conflitos estivessem apenas em uma série de televisão.

A primeira temporada de Star Trek: Deep Space Nine aborda racismo, homossexualidade, guerras, genocídio, intolerância, terrorismo e perda. Claro que também aborda humor, companheirismo, emparia, amor. A série traz episódios marcantes como “o Homem Só” que fala de intolerância e preconceitos, “Caça e Caçador” que fala sobre sociedades de classes, “Frentes de Batalha” que fala sobre o ciclo vicioso da violência, “Dueto” sobre genocídio e crimes de guerra e por fim “Nas mãos dos Profetas” que fala sobre intolerância religiosa e fanatismo. São ao todo dezenove episódios muito bem distribuídos ao longo da temporada.

Deep Space Nine temporada 1 consegue entreter, divertir ao mesmo tempo fazer pensar, é Star Trek no seu melhor estilo, com personagens cativantes e um texto invejável a produção é TV na mais alta qualidade.



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