O que é Deep Space Nine e o que é Star Trek?
Deep
Space Nine (1993-2000) é ousado. Star Trek (pra mim será sempre Jornada nas Estrelas) é um fenômeno
da cultura pop interessante, isso porque a produção insiste em se pôr contra os
moldes do status quo vigente e apresenta temas espinhoso, difíceis de digerir, temas
polêmicos e inquietantes, tudo dentro de uma atmosfera de série tipicamente
americana, tem abertura, encerramento, atores carismáticos e um enredo que
envolve aventura e ação. Foi em Star Trek (1967-1969), a série clássica que a
televisão registou o primeiro beijo inter-racial numa época em que beijar na TV
por si só já era ousado. A criação de Gene Roddemberry nos mostrou uma
sociedade sem classes sociais e propriedade privada e a única ordem parecida
com o Estado é uma federação de planetas unida, se por acaso você concluiu que
isso parece socialismo, bem, você não concluiu errado, a não ser talvez que comunismo
seria melhor aplicado ao que a série descreve.
Em
Star Trek o homem superou as contradições de nossos tempos, o motor de dobra (warp)
deu ao homem a emancipação de fato. Emancipou-se da propriedade, do capital, das
classes, do Estado, da fome, das doenças (como conhecemos hoje) e da pobreza. E
se um mundo assim lhe parece chato, recomendo que assista a série para tirar as
dúvidas. Star Trek: Next Generation (1987-1993) anaboliza todos os conceitos da
série original, se na série da década de 60 ficou subentendido que o capital e
o dinheiro haviam sido superados em Next Generation isso é dito com todas as letras
logo no primeiro episódio e sustentado por longeva sete temporadas. O motor de
dobra deu ao homem não só o primeiro contato, mas permitiu que tempo e espaço
não fossem mais limitações, os replicadores, ou sintetizadores de acordo com a
tradução da época, deu ao homem a emancipação do trabalho na perspectiva de
exploração, em Star Trek as pessoas os personagens parecem felizes porque de
fato estão, não haverá episódios onde depois de alguma ordem um subalterno de Kirk
ou Picard dirá “eu não ganho pra isso”. Os replicadores nesse sentido não
colocaram fim apenas a fome, mas ao trabalho exploratório, o homem em Star Trek
não trabalha para viver, ele trabalha por viver, o trabalho é uma forma de
melhorar a si mesmo, de construir um mundo melhor, de se aperfeiçoar naquilo
que ama. Não por menos os personagens como Kirk, Picard, Mccoy ou Spock são tão
apaixonados pelo que fazem, e consequente são cativantes, eles não fazem o que
fazem por salários ou algo do tipo, eles o fazem porque amam fazer, seus
trabalhos são suas vidas, os define. Podemos fazer comparação a uma outra obra
da cultura pop que gosto, Alien.
Star Trek vs Alien
Alien
é uma série futurista de filmes de terror e ficção científica sobre uma
criatura implacável e predadora, o xenomorfo, predador dos predadores se me
permitem a piada, a série já deu origem a livros, quadrinhos, games e
incontáveis adereços como camisetas, bonecos de ação além de estar no home video
e hoje no streaming. Em Alien o primeiro filme de 1979 acompanhamos a
trajetória da subtenente Ellen Louise Ripley, em um rebocador espacial, a nave
gigantesca Nostromo, que retorna para a terra com uma refinaria de minérios de
vinte milhões de toneladas. Descobre junto a seus companheiros que uma criatura
infectou um deles e depois de se “libertar”, e coloca libertar nisso, a monstruosa
aberração agora os persegue. A criatura é apenas instinto e ignora qualquer
conceito de moral humana, matar é tudo o que ela conhece, nem olhos para
registar as dilacerações a criatura possui. Em Alien o homem também expande
seus domínios para o espaço, porém não houve emancipação, o futuro de Alien é
vazio, gelado, solitário e amedrontador. Assim que acordam de um período de
hibernação os personagens falam sobre salários, quanto ganha cada um para fazer
a função, e nave nos apresenta hierarquia mas também nos mostra que naquele
futuro a exploração de classes, dinheiro e trabalho não mudou em relação a nós,
Nostromo não é uma nave de exploração espacial como Enterprise, não é uma
missão científica, Nostromo é uma nave de exploração do trabalho para uma mega corporação,
Nostromo não busca conhecimento busca lucro, o androide em Alien segue as
ordens da empresa que o construiu e quando mata é apenas redução de custos,
quanta diferença para o Data, não? Um
enredo que coloca pessoas no espaço como trabalhadores assalariados em um futuro
onde o homem consegue viajar pela galáxia mas não consegue emancipar da
exploração de classes e dos interesses mesquinhos de grandes conglomerados
empresariais só poderia mesmo ser um filme de terror.
Como encarar Star
Trek
Star Trek possui duas abordagens, uma é a
abordagem crítica, interna, as camadas proeminentes do roteiro inteligente
sempre olhando para os nossos problemas, um olhar para espelho, Stanislaw Lem em
Solaris escreve que olhamos para o céu não buscando novos mundos e sim buscando
espelhos, procuramos à nós mesmos. Isso não poderia se encaixar melhor em Star
Trek. A segunda é a abordagem como produto da cultura pop, uma análise externa,
uma série modelada de acordo com sua época.
Deep Space Nine tem as duas abordagens em seu cerne. É um olhar impiedoso
ao mundo de sua época, suas contradições, é um trinfo de texto, tal a precisão
das metáforas aos problemas da época, ao mesmo tempo que se trata de um produto
de televisão, feito para lucrar e manter espaço para as propagandas comerciais.
Enfim, Deep Space
Nine
A
série foi idealizada por Rick Berman e Michael Piller seguindo os passos do que
já havia feito Gene Roddemberry. A produção começou a ser escrita em 1991 mas
só foi ao ar em 1993. A trama nos mostra o capitão Benjamim Sisko que teve sua
vida dramaticamente mudada nos acontecimentos da quarta temporada e Next
Generation quando Picard sob controle dos borgs destrói quase toda as defesas da
frota estelar, assim a nave do capitão Sisko é destruída e sua esposa morta.
Sisko então precisa não apenas lidar com o trauma da morte violenta de sua
mulher como precisa criar seu filho, Jake, agora sem a mãe. O Comandante é
designado a um posto de um longínquo quadrante dentro do espaço da federação. Deep
Space Nine é a estação espacial em questão. Em primeira estancia a estação não
tinha grandes interesses, fora uma obra dos cardassianos que a usaram para
reprimir e observar os povos bajorianos. Os cardassianos possuíam um domínio brutal
sobre os povos de Bajor, campos de concentração e perseguição sistemática eram
praticas cotidianas. Quando os rebeldes bajorianos libertam seu povo o domínio de
Cardácia chega ao fim e a frota estelar manda Sisko para administrar a transição
do governo provisório. O plot realmente começa quando uma fenda espacial
(buraco de minhoca) é descoberto no quadrante de Deep Space Nine fazendo da
estação que até então era insignificante a estação mais valiosa da galáxia,
pois a fenda dá direção ao quadrante gama, uma região não explorada do
universo, Sisko se torna o comandante do setor mais importante da federação, e
precisará lidar com o governo provisório, os cardassianos que também querem
explorar a fenda espacial além dos povos de toda galáxia que querem explorar a
fenda, caçadores, cientistas, pesquisadores e curiosos. Só isso já garante um
ótimo ponto de partida, mas temos também personagens fascinantes em todos os
pontos da trama, Odo o chefe de segurança casca grossa, um transmorfo
aparentemente o único de sua espécie, o médico gente boa Julian Bashir, o chefe
O’brian que terá mais aprofundamento e sua personalidade desenvolvida aqui,
Kira Neris, uma major das forças rebeldes bajorianas, com o fim da dominação
cardassiana ela se torna oficial do
governo de transição, através de seus olhos veremos a dor do povo bajoriano,
como a dominação aleijou suas almas e as revoltas, feridas abertas que nunca
cicatrizam, marcaram suas vidas, terror sempre é terror. A oficial da frota
estelar Jadzia Drax, uma personagem singular por ser fruto da união de um
simbionte e um humanoide, diferente do que a literatura nos mostra, ela é um
trill e na sua cultura a junção entre os dois seres é uma hora e não uma
desventura, um privilégio, dessa junção nasce um indivíduo novo que conserva as
memórias dos dois, mas com uma nova consciência. Quark é um ferengi e meu
personagem favorito, ele administra um estabelecimento onde pode-se jogar,
divertir-se, passar a noite, comer, ele é um homem de “negócios”. Seu povo foi
pensado por Gene Roddenbery para servir de chacota ao capitalismo. Assim como
todos de seu povo Quark é mesquinho, ganancioso, egoísta, só pensa em lucro
(isso é pra eles uma religião!), mas ao longo da temporada vemos que ele tem consciência,
bem lá no fundo é verdade, mas ele tem, é nele que o humor da série é melhor
explorado. Como se não bastasse estes ótimos personagens temos também
personagens secundários muito bem escolhidos.
Diferente
de tudo que havia sido feito até então Deep Space Nine não se passa em uma nave
estelar, não se trata de explorar o espaço. O cenário da série é fixo a maior
parte do tempo, não são nossos heróis que viajam para conhecer novos povos, são
os povos que vem a base estelar, seja para conhecer a fenda ou para abastecer
suas naves. Deep Spece Nine funciona como um grande porto em um ponto do
oceano, isso é genial, pois a proposta de Star Trek de conhecer novos povos,
novos mundos pode ser mantida mesmo que sem nave espacial.
Deep Space Nine e
seu tempo
As
referências aos problemas do mundo de sua época são o achado de Deep Space
Nine. A frágil relação do governo provisório com o conflito e ressentimento do
povo de Bajor sobre Cardassianos pode ser lida como uma menção aos povos
armênios, judeus, os povos africanos em relação aos europeus. A fenda tornando o
quadrante o lugar mais importante da galáxia pode ser associado a faixa de Gaza
por exemplo. Mas sem dúvidas o que mais influenciou na trama foram as guerras do
Golfo e as guerras civis na antiga Iugoslávia. Na guerra do Golfo temos os EUA
adentrando em um conflito polémico contra o Iraque para mapear a exploração da
região com o apoio da ONU terminado com a libertação do Kuait, uma relação de
tenção militar constante entre os povos envolvidos. Tal como na série uma
região de interesse está entre dois povos em guerra. Já em relação da Iugoslávia
os crimes de guerra são marcas profundos que sentimos na série. A série não nos
poupa de temas como genocídio, tortura, campos de concentração, e a marca que
tais violências trazem são introduzidas no texto da produção. Era comum abrimos
os jornais na época (abrir jornais, vocês que estão lendo esse texto entendem
essa referência? Hoje se liga o computador), o que víamos eram os conflitos no
Golfo, a tenção entre israelenses e palestinos, o desmantelamento da Iugoslávia
e mais tarde a guerra entre os tutsis e os hutus no genocídio em Ruanda. Estes
conflitos podem ser lidos no decorrer dos episódios da série, todos
desenvolvidos como críticas sociais profundas e brilhantes, quem dera estes
conflitos estivessem apenas em uma série de televisão.
A
primeira temporada de Star Trek: Deep Space Nine aborda racismo, homossexualidade,
guerras, genocídio, intolerância, terrorismo e perda. Claro que também aborda
humor, companheirismo, emparia, amor. A série traz episódios marcantes como “o
Homem Só” que fala de intolerância e preconceitos, “Caça e Caçador” que fala
sobre sociedades de classes, “Frentes de Batalha” que fala sobre o ciclo
vicioso da violência, “Dueto” sobre genocídio e crimes de guerra e por fim “Nas
mãos dos Profetas” que fala sobre intolerância religiosa e fanatismo. São ao
todo dezenove episódios muito bem distribuídos ao longo da temporada.
Deep
Space Nine temporada 1 consegue entreter, divertir ao mesmo tempo fazer pensar,
é Star Trek no seu melhor estilo, com personagens cativantes e um texto
invejável a produção é TV na mais alta qualidade.