quarta-feira, 9 de junho de 2021

Star Trek: Deep Space Nine; segunda temporada (1993-1994)

 

Star Trek: Deep Space Nine; segunda temporada (1993-1994)

Do que se trata

A segunda temporada de Deep Space estabelece os rumos que levariam a série a ser a mais elaborada de todo o universo de Star trek. O tema da série e seus personagens são complexos, contraditórios e incertos, o que torna a série à mais realista de todo o universo ficcional criado por Gene Roddenberry. Os conflitos no mundo da época contemporânea à série ajudaram a dar cor aos episódios, estes mais maduros, de certo modo, sombrios, sem dúvidas mais densos do que Star Trek havia experimentado até então. O fim da guerra fria superou o medo antigo de conflito militar que levaria o homem a um inverno nuclear irremediável, quando cai o muro de Berlim em novembro de 1989 não são apenas pedras que vão ao chão, mas toda uma concepção de mundo que durou praticamente quarenta anos, duas gerações absorveram um conflito que caso estourasse levaria o mundo a um caos que não poderia ser revertido, como viver em um barril de pólvora com pavio aceso, sem saber o tamanho do pavio, fico feliz que tenhamos sido frios o suficiente para não apertar o botão, um otimismo ingênuo que aprendi com o senhor Roddenberry.

Assim, temos durante toda a série uma espécie de resumo dos últimos quarenta anos de sociopolítica, temos espionagem, o medo de um povo misterioso cujos propósitos são de dominação total, temas espinhoso como campos de concentração, terrorismo, constante medo de um conflito armado, crimes de guerra, o pós guerra, religião e fanatismo, direitos civis entre outros. O povos de Bajor acabam de se libertar de uma dominação cardassiana de cinquenta anos, precisam organizar o novo governo, resolver seus assuntos internos e planejar seu futuro, como se isso não fosse problema o bastante Bajor ainda terá que se preocupar com o Dominion, um povo misterioso que estende suas dominações no quadrante gama e promete ser um adversário cruel e impiedoso caso chegue a fenda.  Sobre esse contexto é como se com a queda do muro tão recente, a sensação de alivio e de um mundo que tinha chego ao fim inspirasse os roteiristas à não apenas narrar sua maneira de ver o mundo mas também deixar sua crítica mesmo que pra isso tivessem que deixar um gosto amargo em alguns episódios, nitidamente propositais para causa desconforto.

Sobre os personagens

O desenvolvimento dos personagens foi um acerto, todos tem seu suas trevas expostas de alguma forma aqui. Sabemos que Roddenberry tinha mãos de ferro para compor sua obra, por exemplo o episódio 28 da primeira temporada da série clássica “The City on the Edge of Forever” é considerado por muitos fãs como um dos melhores, seu desenvolvimento contou com brigas com roteiristas e a polemica decisão de creditar Halan Ellison, mesmo ele pedindo para não ser creditado, pois a versão do roteiro que ele escreveu foi mudada antes da filmagem começar. O episódio porém recebeu o Hugo Arward, o que deixou Ellisnon em uma situação difícil, admitir que sua versão não foi a final era admitir que ele não merecia reconhecimento ou o prêmio (que ele se negou a receber). Era melhor ser amigo do que inimigo de Roddenberry.

Roddenberry determinou que em Star Trek: The Next Generation (1987-1993) não houvesse conflito entre os personagens principais, isso foi seguido de certo modo até a quarta temporada, com uma leve flexibilização no decorrer dela até o final da série, com a morte do criador em 1991, foi possível desenvolver outros rumos para a criação do mestre, em TNG os parâmetros já haviam sido criados e pouco havia para fazer ali, porém em Deep Space Nine que se inicia em 1993, sendo assim após a morte de Roddenberry, havia terreno livre para se construir. Logo, o que os personagens principais mais fazem é entrar em conflito, as vezes por qualquer motivo. Por não se tratar de uma nave estelar com o alto padrão de hierarquia e disciplina exigido da frota a estação espacial 9, local de pano de fundo de praticamente todos os episódios, é tudo menos disciplinada. Assim conflitos não são só esperados, são bem vindos, Star Trek precisava disso, foi um acerto, em vários momentos a frota estelar parece um grupos de escoteiros em relação as falcatruas e malandragens desenvolvidas pelos habitantes da estação 9.




O comandante Benjamin Sisko, interpretado por Avery Brooks, precisa lidar com manutenção da ordem na estação ao mesmo tempo precisa orientar seu filho Jake, Sisko perdeu sua esposa na batalha com os borgs anos antes, assim é a única figura da família próxima para Jake, ambos são o alicerce um do outro. Sisko foi nomeado como o emissário dos profetas, sendo assim uma figura de idolatria e respeito para os povos de Bajor, algo que lhe causa desconforto, porém facilita o trabalho da federação na região, já que Sisko, em missão de paz para dar suporte ao governo provisório, é visto como uma figura quase religiosa, seu trabalho com os bajorianos fica também mais fluido.



Kira Nerys, interpretada por Nana Visitor, é uma ex-combatente das forças rebeldes bajorianas e ajudou seu povo a se libertar da dominação de Cardássia. Sua posição de major das forças bajorianas a coloca como um ponto de vista local, as vezes conflitante com Sisko que precisa responder a federação, Kira responde ao povo de Bajor e a sua cultura e ética complexa e milenar, ela é uma personagem religiosa, mas forte e obstinada, sua dificuldade em deixar de lado seus modos do passado de rebelde e sua forte inclinação as tradições bajorianas geram ótimos argumentos e discuções nos episódios.



Chefe Miles O’Brian, interpretado por Colm Meaney, era personagem esporádico de Next Generation, aqui ele tem sua personalidade definida e divertidamente explorada, as vezes explorada até demais! O chefe representa o trabalho braçal, na segunda temporada, começa de fato sua amizade com o doutor Bashir, é sempre divertido vê-los de conversa pro ar no Quark’s e suas aventuras na holosuit, apesar de nunca os vermos de fato na aventura e sim a sugestão do que fizeram ou do que vão realizar. O chefe tem uma filha, aqui com cinco anos e é casado com Kaiko, interpretada por Rosalind Chao, uma botânica que desistiu da carreira para seguir o marido no novo emprego na estação 9, essa mulher deve amar mesmo o O’Brian. Kaiko assume a função de professora na estação.



Jadzia Dax, interpretada por Terry Farrell, é um trill, uma raça resultante da união de um humanoide e um simbionte. Aqui, do conflito surge uma nova vida, uma nova consciência. Dax, a identidade do simbionte, possui mais de setecentos anos, assim o simbionte pode sobreviver por muitas eras. Jadzia tem as memórias das vidas passadas de Dax, nem sempre nítidas é verdade, alguns segredos envolvem o passado desse simbionte tão antigo, sua forma de ver o mundo é otimista mas realista. Jadzia Dax precisa se afirmar como “Jadzia” e romper com sua consciência anterior, o hospedeiro Curzon Dax, sempre parte dela, mas nunca ela.



Doutor Julian Bashir, interpretado por Alexander Siddig, é o médico responsável da estação. Sua visão quase inocente conflita com o clima de guerra que envolve a série. Na segunda temporada o conhecemos melhor, a visão de um médico intelectual arrogante mas atencioso vai ficando para trás e vemos Bashir humanizado, sua relação com Garak, interpretado por Marc Alaimo, um “alfaiate” cardassiano ardiloso, conflituoso, mentiroso e irresistivelmente charmoso e engraçado, é responsável por alguns dos melhores momentos da temporada e da série. Garak também terá sua personalidade aprofundado quase tanto quanto a de Bashir. No geral Bashir terá conflitos para com sua responsabilidade na federação e sua responsabilidade como médico.



Odo, interpretado por René Alberjonois, é um ser indefinido (liquido) que descobrirá sua origem no decorrer das temporadas. Sua propriedade física lhe permite se transformar em qualquer forma material orgânica ou não, no entanto ele tem dificuldades em reproduzir rostos humanoides. Odo tem personalidade firme, é o chefe de segurança da estação e constantemente entra em conflito com Quark, por seus negócios duvidoso e suas constantes tentativas de fazer contrabando na estação. Odo busca humanidade e definir em definitivo quem realente é.



Quark, interpretado por Armir Shimerman, é o dono do Quark’s, um estabelecimento onde pode-se consumir, beber, almoçar, jantar e usar as holosuites, basicamente os mesmos holodecks onde víamos o Data bancar o Sherlock Holmes, só que configurados para atender ao público da estação 9, um espaço onde através da realidade virtual pode-se vivenciar praticamente qualquer experiência e recriar ambientes e pessoas. Quark aluga as holosuites e os programas para se rodar nelas, Quark é quase um cafetão nesse sentido, porém é possível viver qualquer aventura nas holosuites, de tomadas na segunda guerra mundial a programas eróticos, vai da imaginação e do gosto do freguês. Quark é o conflito encarnado, ele é um ferengi, como já foi dito no texto da segunda temporada os ferengis são uma representação do capitalismo, na verdade uma chacota dele. Assim, Quark se vê o tempo todo conflitando com Odo, mas também com seu irmão Rom, interpretado por Max Grodénchik, e seu sobrinho Gon, esse interpretado por Aron Eisenberg, os dois seus funcionários. Coitados!

Os episódios

Como já foi dito, na segunda temporada temos a mesma tônica adotada na primeira, episódios profundos em suas metáforas que se relacionam com nosso mundo e algumas de nossas mais dolorosas feridas, problematizando assim os personagens e nosso mundo. Vamos falar de alguns destes episódios seguindo a tradução feita pela Netflix.

O episódio 1 “A volta para casa”, mostra Kira em uma missão para resgatar prisioneiros bajorianos de um campo de concentração Cardassiano. Aqui temos uma relação com prisioneiros de guerra e campos de trabalhos forçados, algo que vigora até os dias atuais, os EUA por exemplo tem uma relação conflituosa quanto a isso, a pesar de condenar a pratica, tem em sua história manchas como os campos de concentração japoneses que criou na década de 1940 e a ilha de Guantánamo, claro que não vamos ver as pessoas quebrando pedras nestes exemplos que citei como acontece no episódio, mas a metáfora sobre aprisionar pessoas por ser considerada um perigo para o estado continua valendo.   Temos também o episódio 3 e 4 “Círculo e o Cerco”, o tema terrorismo é muito presente. O episódio 5 “Cardassianos”, nos fala sobre crimes de guerra, uma criança cardassiana é criada por uma família bajoriana e ensinada a odiar a própria espécie, uma forma que seus pais adotivos encontraram de se vingar do povo que os dominou. Um tema muito pesado. O episódio 7 é “Regras de Aquisição”, um episódio em que conhecemos melhor as regras e vida dos ferengis. Aqui conhecemos Pel, um ferengi que logo chama a tenção de Quark por seu vasto conhecimento das regras de aquisição e seu tino virtuoso aos negócios. As regras de aquisição são o conjunto de normas que norteiam a pratica comercial e moral dos ferengis. Os dois criam uma forte aliança que fica encarregada de negociar em nome do grande Nagus, o líder (e chefe religioso?) da sociedade ferengi. Quark é tão ganancioso que não nota que Pel, tem atração por ele, Pel na verdade está apaixonado, e na verdade é mulher. Na sociedade ferengi as mulheres não tem direito de fazer negócios, uma mulher que “comete lucro” não só está cometendo crime como condena sua família a humilhação e pesadas multas. Na sociedade ferengi as mulheres não podem usar roupas e não podem lucrar, sendo completamente marginalizadas e inferiorizadas pelos homens.  A metáfora aqui é clara, o fato das mulheres não poderem trabalhar na sociedade ferengi se relaciona com os cargos de alto escalão executivo povoado por homens e renumeração menor as mulheres em relação ao seu oposto. Já a questão das mulheres não poderem se vestir, quantas meninas vestindo azul você costuma ver por ai? O modo como os ferengis tratam suas mulheres é uma visão exagerada de problemas e vícios socioculturais bem humanos.

No episódio 10 “Santuário”, temos contato com refugiados, os Skrreeans que fugiram do quadrante gama por perseguição do Dominion. Eles são fazendeiros e estão em busca da terra prometida que acreditam ser Bajor. Aqui temos dois problemas desenvolvidos, um é a ameaça do Dominion que se fará presente a partir daqui, nos é mostrado o terror que esse poderoso império pode causar, estariam os personagens principais de Deep Space Nine vendo a eles mesmos no futuro? O segundo problema é a ocupação e responsabilidade que um povo tem ao receber o outro. Os Skrreeans são cerca de dez milhões de fazendeiros, Bajor está se reconstruindo e não gosta da ideia de dividir suas terras com outros povos da galáxia. Se você viu aqui alguma relação com os refugiados sírios, ou iranianos, venezuelanos até? Essa relação existe mesmo, porém por conta da época esta relação está mais próxima aos povos judeus e europeus que passaram por ocupação do eixo durante a segunda guerra mundial. Essa questão é aprofundada, os povos Skrreeans por serem fazendeiros pedem apenas terras para Bajor, eles são especialistas e garantem que farão de Bajor uma sociedade ainda mais prospera, mas Bajor tem seus temores, uma mistura de culturas além de ser difícil pela questão da língua, fé e tradições, também traz o temor em relação a temporadas difíceis, se a fome vir, como os povos irão lidar com a adversidade?  É o que se pergunta Major Kira. Bajor ainda não está associada a federação, assim ainda não possui por exemplo os replicadores que permitiram a Terra emancipar da fome e da exploração. Esse episódio era atual na época em que foi escrito e infelizmente continua atual.

O episódio 14 “Sussurros” é um thriller de ação e suspense, se por acaso tem alguma dúvida em assistir à essa temporada comece por esse aqui, depois você me agradece. Episódio 15 “Paraiso”, um episódio sobre justiça, estado policial e utopia. Sisko e O’brian localizam um planeta que possui uma colônia de humanos, ao descerem para investigar sua nave fica comprometida o que faz com que eles tenham contato com os povos dali. Sua sociedade à primeira vista parece pacifica, eles vivem sem qualquer tecnologia avançada e como fazendeiros em uma cultura naturalista, porem com o tempo Sisko e o chefe descobrem que o povoado possuem forte repressão moral e física. Qualquer rompimento com as regras vigentes é punido severamente com a “caixa”, uma analogia ao forno, forma de tortura e repressão adotada pelos fazendeiros americanos no período de escravidão. Quando Sisko e O’brian estão nas plantações eles avistam um homem ser retirada da caixa, então é dito a eles que o homem havia roubado.  A justificativa é de que com o medo da punição ninguém cometerá crimes. Como já deve ter ficado claro, não se trata de um mecanismo de correção moral mas sim um mecanismo de controle, já que o medo nunca foi impedimento para criminosos e o episódio deixa esclarece que a caixa era muito usada, logo, pode-se concluir que se ela serve para prevenir crimes não está funcionado. Alixus é líder soberana do local, é dela que toda a estrutura moral e a ordem da sociedade é construída, é dela a decisão de quem vai ou não para a caixa. Ao final do conflito a justificativa da líder autoritária é de que fez tudo ela comunidade, quantos lideres realizaram atrocidades em nome de algo? Fica a ideia de que medo e autoritarismo nunca se justifica a não ser pela figura soberba e egocêntrica de quem os impôs. 

O episódio 16 “Jogo de Sombras”, fala sobre o que é real e o que é vida, já o 20 e 21 “Os maquis” parte 1 e 2, é sobre terrorismo e conflito armado. O maquis são uma força paramilitar remanescentes dos rebeldes Bajorianos que pretende libertar todos os povos que sofrem dominação cardassiana através do terrorismo. Eles são de vários setores da galáxia e composto por povos não só bajorianos, assim os maquis tem laços em vários lugares. Temos aqui um grande aprofundamento dos personagens em especial de Sisko, Gul Ducat, o cardassiano geralmente antagonista da série e Quark. É de Sisko um dos monólogos mais impactantes, após ser ordenado a ele que estabeleça um diálogo entre os maquis, cardassianos e bajorianos Sisko diz: “Só por que um grupo de pessoas pertence a federação não quer dizer que sejam santas” ... “O problema é a Terra, na terra não há pobreza, nem crime nem guerra. Você olha pela janela do quartel general da frota e vê o paraíso. É fácil ser santo no paraíso. Mas acontece que os maquis não vivem no paraíso. Lá fora, na zona desmilitarizada os problemas não foram resolvidos ainda. Lá fora não existem santos, só pessoas zangadas, assustadas, pessoas determinadas que vão fazer de tudo para sobreviver. Não importa se a federação aprova ou desaprova”. Kira que ouvira tudo apenas diz; “pra mim faz sentido”. Uma reflexão forte de Sisko, um olhar atencioso e repreensivo frente a federação, lembrando aos mesmos quem não são a linha moral do universo, ter empatia e solidarizar-se é o único caminha pra um diálogo franco e sincero. Nesse episódio também tomamos conhecimento sobre o sistema de justiça cardassiano, lá os julgamentos começam com a sentença já definida, os julgamentos servem para entreter o povo. Isso nos faz pensar sobre nosso próprio sistema jurídico e como temos que dar valor ao sistema que precisa melhorar, mas é melhor que o dos cardassianos, temos que admitir. Outro lado interessante do episódio é o ponto de vista de Quark sobre guerra, ao ensinar lógica dos negócios para um volcano maqui, sim pois é, Quark ensina logica a um volcano, essa série é demais, o ferengi demonstra que a paz está barata, logo é hora de compra-la, quando todos tem poder igual a paz fica barata e os rebeldes tem a vantagem no acordo pois a paz está em baixa, assim é a melhor hora para compra-la, atacar só aumenta o conflito tornando a paz mais cara. Eu gosto da lógica do Quark. O episódio traz um texto inteligente ao abordar terrorismo por vários pontos de vista, e problematizar as relações de poder.

O episódio 22 “Verdade e mentiras” conhecemos mais sobre Garak e sobre a cultura cardassiana no geral. No episódio Garak fica seriamente doente o que faz com que o doutor Bash se esforce ao máximo para conseguir salva-lo. Um diálogo entre Bashir e Garak sobre um épico cardassiano intitulado “O Sacrifício sem fim” define o episódio, nos é apresentado a crônica de uma família cardassiana que cometem basicamente os mesmos erros sempre, todos os personagens tem vidas altruístas de serviços ao estado envelhece e morre, depois vem a geração seguinte e faz tudo de novo. Segundo Garak o épico repetitivo é a estrutura mais elegante da literatura cardassiana. O doutor ainda retruca, diz que nenhum dos personagens tem realmente vida, viver é mais que o dever com o estado. Enquanto que Garak apenas responde; “típico ponto de vista da federação”. Nota-se que os roteiristas se divertiam muito na elaboração destes diálogos, aqui temos Garak representando com muito humor uma sociedade autoritária e reacionária sendo questionada por Bashir que veio de uma utopia, a Terra e a federação.

O Episódio 24 “O Colaborador”, problematiza a relação de subserviência, vedek Bareil, um homem próximo a Kira é acusado de colaborar com os cardassianos durante a ocupação em Bajor. Aqui temos metáforas que podem se estender a polícia judaica, e mesmo não sendo o objetivo dos roteiristas podemos comparar com o “capitão do mato” no Brasil. Para um povo oprimido um colaborador do opressor é visto como pior que quem oprime. Vimos isto de forma brilhante no filme de Tarantino Jango Livre.

Como expus a segunda temporada composta por 26 episódios acompanha a primeira em seus tons sombrios mas também oferece humor, aprofunda seus personagens nos fazendo querer saber mais sobre eles e traz histórias criativas com várias metáforas que podemos comparar com nosso mundo. A segunda temporada é tão boa quanto a primeira assim sendo, um ótimo programa de televisão, ainda diverte, ainda entretém e em muitos sentidos infelizmente ainda é atual.  

Segue aqui lista dos episódios com comentários do site Trek Brasilis para que quiser saber mais, um abraço e obrigado por ler esse artigo. 



sábado, 29 de maio de 2021

Star Trek: Deep Space Nine. Temporada 1


O que é Deep Space Nine e o que é Star Trek?

Deep Space Nine (1993-2000) é ousado. Star Trek (pra mim será sempre Jornada nas Estrelas) é um fenômeno da cultura pop interessante, isso porque a produção insiste em se pôr contra os moldes do status quo vigente e apresenta temas espinhoso, difíceis de digerir, temas polêmicos e inquietantes, tudo dentro de uma atmosfera de série tipicamente americana, tem abertura, encerramento, atores carismáticos e um enredo que envolve aventura e ação. Foi em Star Trek (1967-1969), a série clássica que a televisão registou o primeiro beijo inter-racial numa época em que beijar na TV por si só já era ousado. A criação de Gene Roddemberry nos mostrou uma sociedade sem classes sociais e propriedade privada e a única ordem parecida com o Estado é uma federação de planetas unida, se por acaso você concluiu que isso parece socialismo, bem, você não concluiu errado, a não ser talvez que comunismo seria melhor aplicado ao que a série descreve.

Em Star Trek o homem superou as contradições de nossos tempos, o motor de dobra (warp) deu ao homem a emancipação de fato. Emancipou-se da propriedade, do capital, das classes, do Estado, da fome, das doenças (como conhecemos hoje) e da pobreza. E se um mundo assim lhe parece chato, recomendo que assista a série para tirar as dúvidas. Star Trek: Next Generation (1987-1993) anaboliza todos os conceitos da série original, se na série da década de 60 ficou subentendido que o capital e o dinheiro haviam sido superados em Next Generation isso é dito com todas as letras logo no primeiro episódio e sustentado por longeva sete temporadas. O motor de dobra deu ao homem não só o primeiro contato, mas permitiu que tempo e espaço não fossem mais limitações, os replicadores, ou sintetizadores de acordo com a tradução da época, deu ao homem a emancipação do trabalho na perspectiva de exploração, em Star Trek as pessoas os personagens parecem felizes porque de fato estão, não haverá episódios onde depois de alguma ordem um subalterno de Kirk ou Picard dirá “eu não ganho pra isso”. Os replicadores nesse sentido não colocaram fim apenas a fome, mas ao trabalho exploratório, o homem em Star Trek não trabalha para viver, ele trabalha por viver, o trabalho é uma forma de melhorar a si mesmo, de construir um mundo melhor, de se aperfeiçoar naquilo que ama. Não por menos os personagens como Kirk, Picard, Mccoy ou Spock são tão apaixonados pelo que fazem, e consequente são cativantes, eles não fazem o que fazem por salários ou algo do tipo, eles o fazem porque amam fazer, seus trabalhos são suas vidas, os define. Podemos fazer comparação a uma outra obra da cultura pop que gosto, Alien.

Star Trek vs Alien 

Alien é uma série futurista de filmes de terror e ficção científica sobre uma criatura implacável e predadora, o xenomorfo, predador dos predadores se me permitem a piada, a série já deu origem a livros, quadrinhos, games e incontáveis adereços como camisetas, bonecos de ação além de estar no home video e hoje no streaming. Em Alien o primeiro filme de 1979 acompanhamos a trajetória da subtenente Ellen Louise Ripley, em um rebocador espacial, a nave gigantesca Nostromo, que retorna para a terra com uma refinaria de minérios de vinte milhões de toneladas. Descobre junto a seus companheiros que uma criatura infectou um deles e depois de se “libertar”, e coloca libertar nisso, a monstruosa aberração agora os persegue. A criatura é apenas instinto e ignora qualquer conceito de moral humana, matar é tudo o que ela conhece, nem olhos para registar as dilacerações a criatura possui. Em Alien o homem também expande seus domínios para o espaço, porém não houve emancipação, o futuro de Alien é vazio, gelado, solitário e amedrontador. Assim que acordam de um período de hibernação os personagens falam sobre salários, quanto ganha cada um para fazer a função, e nave nos apresenta hierarquia mas também nos mostra que naquele futuro a exploração de classes, dinheiro e trabalho não mudou em relação a nós, Nostromo não é uma nave de exploração espacial como Enterprise, não é uma missão científica, Nostromo é uma nave de exploração do trabalho para uma mega corporação, Nostromo não busca conhecimento busca lucro, o androide em Alien segue as ordens da empresa que o construiu e quando mata é apenas redução de custos, quanta diferença para o Data, não?  Um enredo que coloca pessoas no espaço como trabalhadores assalariados em um futuro onde o homem consegue viajar pela galáxia mas não consegue emancipar da exploração de classes e dos interesses mesquinhos de grandes conglomerados empresariais só poderia mesmo ser um filme de terror.

Como encarar Star Trek

 Star Trek possui duas abordagens, uma é a abordagem crítica, interna, as camadas proeminentes do roteiro inteligente sempre olhando para os nossos problemas, um olhar para espelho, Stanislaw Lem em Solaris escreve que olhamos para o céu não buscando novos mundos e sim buscando espelhos, procuramos à nós mesmos. Isso não poderia se encaixar melhor em Star Trek. A segunda é a abordagem como produto da cultura pop, uma análise externa, uma série modelada de acordo com sua época.  Deep Space Nine tem as duas abordagens em seu cerne. É um olhar impiedoso ao mundo de sua época, suas contradições, é um trinfo de texto, tal a precisão das metáforas aos problemas da época, ao mesmo tempo que se trata de um produto de televisão, feito para lucrar e manter espaço para as propagandas comerciais.

Enfim, Deep Space Nine 

A série foi idealizada por Rick Berman e Michael Piller seguindo os passos do que já havia feito Gene Roddemberry. A produção começou a ser escrita em 1991 mas só foi ao ar em 1993. A trama nos mostra o capitão Benjamim Sisko que teve sua vida dramaticamente mudada nos acontecimentos da quarta temporada e Next Generation quando Picard sob controle dos borgs destrói quase toda as defesas da frota estelar, assim a nave do capitão Sisko é destruída e sua esposa morta. Sisko então precisa não apenas lidar com o trauma da morte violenta de sua mulher como precisa criar seu filho, Jake, agora sem a mãe. O Comandante é designado a um posto de um longínquo quadrante dentro do espaço da federação. Deep Space Nine é a estação espacial em questão. Em primeira estancia a estação não tinha grandes interesses, fora uma obra dos cardassianos que a usaram para reprimir e observar os povos bajorianos. Os cardassianos possuíam um domínio brutal sobre os povos de Bajor, campos de concentração e perseguição sistemática eram praticas cotidianas. Quando os rebeldes bajorianos libertam seu povo o domínio de Cardácia chega ao fim e a frota estelar manda Sisko para administrar a transição do governo provisório. O plot realmente começa quando uma fenda espacial (buraco de minhoca) é descoberto no quadrante de Deep Space Nine fazendo da estação que até então era insignificante a estação mais valiosa da galáxia, pois a fenda dá direção ao quadrante gama, uma região não explorada do universo, Sisko se torna o comandante do setor mais importante da federação, e precisará lidar com o governo provisório, os cardassianos que também querem explorar a fenda espacial além dos povos de toda galáxia que querem explorar a fenda, caçadores, cientistas, pesquisadores e curiosos. Só isso já garante um ótimo ponto de partida, mas temos também personagens fascinantes em todos os pontos da trama, Odo o chefe de segurança casca grossa, um transmorfo aparentemente o único de sua espécie, o médico gente boa Julian Bashir, o chefe O’brian que terá mais aprofundamento e sua personalidade desenvolvida aqui, Kira Neris, uma major das forças rebeldes bajorianas, com o fim da dominação cardassiana ela se torna  oficial do governo de transição, através de seus olhos veremos a dor do povo bajoriano, como a dominação aleijou suas almas e as revoltas, feridas abertas que nunca cicatrizam, marcaram suas vidas, terror sempre é terror. A oficial da frota estelar Jadzia Drax, uma personagem singular por ser fruto da união de um simbionte e um humanoide, diferente do que a literatura nos mostra, ela é um trill e na sua cultura a junção entre os dois seres é uma hora e não uma desventura, um privilégio, dessa junção nasce um indivíduo novo que conserva as memórias dos dois, mas com uma nova consciência. Quark é um ferengi e meu personagem favorito, ele administra um estabelecimento onde pode-se jogar, divertir-se, passar a noite, comer, ele é um homem de “negócios”. Seu povo foi pensado por Gene Roddenbery para servir de chacota ao capitalismo. Assim como todos de seu povo Quark é mesquinho, ganancioso, egoísta, só pensa em lucro (isso é pra eles uma religião!), mas ao longo da temporada vemos que ele tem consciência, bem lá no fundo é verdade, mas ele tem, é nele que o humor da série é melhor explorado. Como se não bastasse estes ótimos personagens temos também personagens secundários muito bem escolhidos.

Diferente de tudo que havia sido feito até então Deep Space Nine não se passa em uma nave estelar, não se trata de explorar o espaço. O cenário da série é fixo a maior parte do tempo, não são nossos heróis que viajam para conhecer novos povos, são os povos que vem a base estelar, seja para conhecer a fenda ou para abastecer suas naves. Deep Spece Nine funciona como um grande porto em um ponto do oceano, isso é genial, pois a proposta de Star Trek de conhecer novos povos, novos mundos pode ser mantida mesmo que sem nave espacial.

Deep Space Nine e seu tempo

As referências aos problemas do mundo de sua época são o achado de Deep Space Nine. A frágil relação do governo provisório com o conflito e ressentimento do povo de Bajor sobre Cardassianos pode ser lida como uma menção aos povos armênios, judeus, os povos africanos em relação aos europeus. A fenda tornando o quadrante o lugar mais importante da galáxia pode ser associado a faixa de Gaza por exemplo. Mas sem dúvidas o que mais influenciou na trama foram as guerras do Golfo e as guerras civis na antiga Iugoslávia. Na guerra do Golfo temos os EUA adentrando em um conflito polémico contra o Iraque para mapear a exploração da região com o apoio da ONU terminado com a libertação do Kuait, uma relação de tenção militar constante entre os povos envolvidos. Tal como na série uma região de interesse está entre dois povos em guerra. Já em relação da Iugoslávia os crimes de guerra são marcas profundos que sentimos na série. A série não nos poupa de temas como genocídio, tortura, campos de concentração, e a marca que tais violências trazem são introduzidas no texto da produção. Era comum abrimos os jornais na época (abrir jornais, vocês que estão lendo esse texto entendem essa referência? Hoje se liga o computador), o que víamos eram os conflitos no Golfo, a tenção entre israelenses e palestinos, o desmantelamento da Iugoslávia e mais tarde a guerra entre os tutsis e os hutus no genocídio em Ruanda. Estes conflitos podem ser lidos no decorrer dos episódios da série, todos desenvolvidos como críticas sociais profundas e brilhantes, quem dera estes conflitos estivessem apenas em uma série de televisão.

A primeira temporada de Star Trek: Deep Space Nine aborda racismo, homossexualidade, guerras, genocídio, intolerância, terrorismo e perda. Claro que também aborda humor, companheirismo, emparia, amor. A série traz episódios marcantes como “o Homem Só” que fala de intolerância e preconceitos, “Caça e Caçador” que fala sobre sociedades de classes, “Frentes de Batalha” que fala sobre o ciclo vicioso da violência, “Dueto” sobre genocídio e crimes de guerra e por fim “Nas mãos dos Profetas” que fala sobre intolerância religiosa e fanatismo. São ao todo dezenove episódios muito bem distribuídos ao longo da temporada.

Deep Space Nine temporada 1 consegue entreter, divertir ao mesmo tempo fazer pensar, é Star Trek no seu melhor estilo, com personagens cativantes e um texto invejável a produção é TV na mais alta qualidade.